As recentes manifestações de eventos climáticos extremos no Brasil – desde ondas de calor intensas e secas prolongadas na Amazônia até inundações devastadoras no Sul – transcenderam a esfera ambiental para se consolidarem como uma ameaça direta e mensurável à saúde pública e ao bem-estar social. O cenário é complexo, agravado pela perda significativa de superfície coberta por água no país, afetando inclusive reservatórios naturais, intrinsecamente menos resilientes às alterações climáticas, impõe desafios sanitários adicionais.
A íntima ligação entre as mudanças climáticas e a saúde humana posiciona este tema como a maior ameaça global à saúde do século XXI. Os impactos são multifacetados, englobando desde o aumento da incidência de doenças infecciosas (transmitidas por vetores, água ou alimentos) e o agravamento de condições respiratórias e cardiovasculares, até o comprometimento da segurança alimentar e hídrica.
Neste contexto crítico, as avaliações anuais da iniciativa “The Lancet Countdown on Health and Climate Change”[2], uma colaboração multidisciplinar que reúne pesquisadores de 52 instituições e agências da ONU, fornecem um arcabouço científico robusto para compreender e endereçar a crise. Os relatórios oferecem recomendações baseadas em evidências de alta qualidade para subsidiar a tomada de decisão.
O “Lancet Countdown Policy Brief 2023 para o Brasil” e o documento suplementar “Relatório Lancet Countdown 2023 para a América Latina no Brasil”, que sumariza achados-chave do relatório para a América Latina, apresentam dados específicos e alarmantes sobre os impactos no país:
A exposição a altas temperaturas representa risco direto à vida e à saúde, causando doenças relacionadas ao calor e aumentando a demanda por atendimento médico. Grupos vulneráveis como idosos, crianças pequenas, gestantes e comunidades socioeconomicamente desiguais são particularmente atingidos. No período de 2013-2022, indivíduos com menos de 1 ano e com mais de 65 anos experimentaram, em média, um aumento de 206% e 196%, respectivamente, nos dias de ondas de calor anuais, comparado a 1986-2005.
A transmissão de doenças infecciosas, como a dengue, é influenciada por mudanças na temperatura e precipitação. A capacidade do mosquito Aedes aegypti de transmitir dengue aumentou 95% no Brasil entre 2013-2022, comparado a 1951-1960, com o número reprodutivo básico (R0) acima de 1 nacionalmente, indicando potencial de disseminação.
A poluição do ar por material particulado (PM), derivada em parte do uso de combustíveis fósseis, continua a ser uma fonte significativa de carga de doenças. A taxa de mortalidade prematura atribuível ao PM derivado de combustíveis fósseis aumentou 16,7% de 2005 a 2020, contribuindo para o risco de doenças respiratórias e cardiovasculares, câncer de pulmão, diabetes, distúrbios neurológicos e resultados adversos na gravidez, o que onera os serviços de saúde.
Apesar do aumento do compromisso público e político com a saúde e o clima ao longo do tempo, persistem desafios importantes. Em 2022, apenas 31 das 5572 unidades administrativas de segundo nível (0,6%) no Brasil relataram ter realizado avaliações de risco climático em nível municipal.
A robustez desses estudos do Lancet reside na sua abordagem baseada em indicadores quantificáveis e evidências científicas, cobrindo múltiplos setores e permitindo o monitoramento do progresso ou retrocesso em relação às metas de saúde e clima.
Os prejuízos das mudanças climáticas e seus efeitos na saúde se traduzem em custos econômicos e sociais vultosos para os setores público e privado. O “Data-sheet-Brasil” detalha alguns desses custos:
A exposição ao calor afeta trabalhadores e limita a produtividade. Entre 2013 e 2022, o Brasil perdeu anualmente o equivalente a 6 bilhões de horas de trabalho devido à exposição ao calor, um aumento de 3% comparado ao período de 1991-2000. Isso se traduz em uma perda potencial de renda de US$ 19,5 bilhões por ano.
Em 2020, US$ 7,5 bilhões de dinheiro público, o equivalente a 4,5% dos gastos com saúde, foram destinados a subsidiar combustíveis fósseis. Subsidiar combustíveis fósseis implica o uso de fundos públicos para financiar emissões que são prejudiciais à saúde, representando um custo oculto significativo.
Embora não diretamente do “Data-sheet-Brasil”, outros documentos apontam para perdas econômicas anuais médias de US$ 227 bilhões globalmente entre 2019-2023 devido a eventos extremos relacionados ao clima, um aumento de 23% em relação a 2010-2014. Tais eventos destroem meios de subsistência e infraestrutura crítica, incluindo a de saúde, gerando custos adicionais para o sistema público (SUS).
A perda de vidas, o aumento da carga de doenças infecciosas e crônicas, e o impacto na segurança hídrica e alimentar resultam em custos diretos e indiretos em saúde, absenteísmo e redução da produtividade geral. A falta de acesso à água para 35 milhões de pessoas constitui uma vulnerabilidade agravada pelas mudanças climáticas, com profundas implicações sociais e de saúde pública.
Diante da magnitude dos impactos, é imperativo que as ações de mitigação e adaptação sejam aceleradas imediatamente. O fortalecimento da resiliência envolve múltiplos eixos, incluindo educação, planejamento urbano sustentável e investimentos em infraestrutura crítica. A baixa proporção de cidades com avaliações de risco climático demonstra uma lacuna significativa na capacidade adaptativa local.
O papel do Estado, em particular do Ministério da Saúde, é central na resposta. A criação da Coordenação Geral de Mudanças Climáticas e Equidade em Saúde no âmbito do Ministério da Saúde, apoiada pelo Observatório de Clima e Saúde da Fiocruz[3], sinaliza o reconhecimento da prioridade do tema. Este órgão visa organizar ações no SUS, articulando-se com outros ministérios para ações conjuntas de mitigação e adaptação.
A integração de dados climáticos e de vigilância epidemiológica é fundamental para a antecipação e gestão de riscos. O SUS enfrenta desafios na adaptação a eventos extremos, exigindo a expansão de capacidades para emergências sanitárias. O Brasil está no processo de desenvolvimento do novo Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima, que inclui um Plano Setorial específico para a Saúde, focando na redução dos impactos nas pessoas e nos serviços de saúde. O país já possui um compromisso formal, no âmbito da iniciativa ATACH da OMS, para desenvolver sistemas de saúde resilientes ao clima e de baixo carbono. Colocar a saúde das pessoas no centro da formulação de políticas sobre mudanças climáticas é essencial para proteger o bem-estar e reduzir desigualdades.
A análise das fontes consultadas, incluindo os dados específicos do “Datasheet Brasil”[4], reforça a evidência de que o Brasil já experiencia severos e crescentes impactos das mudanças climáticas sobre a saúde humana e a economia. A perda de recursos hídricos e a persistente má qualidade da água, o aumento da exposição a extremos de calor e seus efeitos sobre a mortalidade em grupos vulneráveis, a expansão do risco de doenças transmitidas por vetores, os custos econômicos diretos em perda de produtividade e subsídios a fontes poluidoras, e a pressão sobre a infraestrutura de saúde são manifestações concretas dessa crise.
Os estudos do The Lancet Countdown, com sua abordagem baseada em indicadores, oferecem um diagnóstico preciso da situação e apontam para a urgência de uma resposta coordenada. Embora o Brasil tenha demonstrado passos importantes, como a criação de uma coordenação específica no Ministério da Saúde e o compromisso com sistemas de saúde resilientes, a escala dos desafios exige uma aceleração significativa na implementação de políticas. A baixa adesão dos municípios à avaliação de riscos climáticos ilustra a necessidade de fortalecer a capacidade adaptativa em todos os níveis de governo.
Reverter essa tendência e evitar o agravamento do aquecimento global e de eventos climáticos extremos depende intrinsecamente da implementação de políticas públicas intersetoriais e robustas. Medidas que promovam sistemas alimentares sustentáveis e dietas saudáveis alinhadas ao Guia Alimentar Brasileiro, a gestão eficaz dos recursos hídricos, e regulamentações que priorizem a saúde e o ambiente são cruciais. Tais ações não apenas mitigam as causas das mudanças climáticas, mas também geram co-benefícios diretos para a saúde das populações. É imperativo que o Brasil, utilizando as evidências científicas disponíveis, coloque a saúde e o bem-estar de sua população no cerne de sua estratégia climática para construir um futuro mais justo, resiliente e sustentável.
[1] Fabio Dib é Advogado, especialista em Direito Ambiental, Urbanístico, Público, Empresarial e do Agronegócio e Mestre em Ciências Ambientais
[4] https://lancetcountdown.org/wp-content/uploads/2024/10/Data-sheet-Brasil-.pdf